domingo, 3 de abril de 2011

Por uma infância sem racismo

Demorei para escrever esse post, tanto que acabei perdendo a blogagem coletiva organizada pela UNICEF. Mas de qq forma fiquei com várias ideias na cabeça e precisa escrever sobre isso.

Racismo pra mim é um assunto muito "caro". Pra quem não sabe, sou historiadora e desde o início das minhas pesquisas me dedico a pesquisar a escravidão e os escravos. Dediquei dois anos de mestrado para estudar as famílias escravas. Algo que boa parte da historiografia negou por anos: "escravo vive na promiscuidade, não têm famílias", diziam alguns.Eu entendo a escravidão como um sistema que prende corpos, restringe a liberdade física, mas não é capaz de deturpar completamente os valores das pessoas. Basta ver o quanto temos de influência em nossa cultura, mesmo após 300 anos de escravidão. Os negros trazidos da África não estavam no outro lado do oceano esperando para serem civilizados: eles tinham suas crenças, sua organização e suas instituições. A travessia do Atlântico não apagou isso.

O interesse em estudar essas questões não é por acaso, é um encontro com a minha ascendência. Sou filha de um negro e uma branca..
(pausa... mas por favor, não me chamem de mulata. Detesto essa denominação, carregada de preconceito. Não sou nenhum híbrido (= mula, origem da palavra), e nem tu vai me ver andando por aí com penas na cabeça e um biquíni de lantejoulas (Obrigada Sargenteli...).. despausa)

... hoje sou casada com um negro e temos o nosso filho amado, Teodoro, que dá razão a esse blog.

Pensar nas questões raciais até o nascimento do Teodoro tinha uma dimensão quase "abstrata": estava eu a "militar" pela igualdade e respeito para mim, família e amigos, geralmente adultos. E apesar de sempre pensar nas crianças que teria como alunos sendo professora de história, é diferente de ter ações e pensamentos refletindo diretamente no futuro de uma criança.

E, inevitavelmente, quando penso no que posso fazer para que o Téo tenha uma infância sem racismo, lembro do que minha mãe fez por mim. Como já disse aqui, minha mãe é branca, filha de uma polonesa com um bugre (no RS como chamamos os descendentes indígenas), mas fisicamente ela acabou ficando mais pra "polaca" do que pra "índia". Mesmo nesse cenário, foi a minha mãe que me ensinou a ser negra. Foi ela que me disse que meu cabelo é lindo assim mesmo, cacheadinho, e que a minha cor da pele não diz quem eu sou, ela diz de onde eu vim, e isso é que é importante.

(Sim, acredito que assim como ensinamos nossas crianças a serem racistas e preconceituosas, ensinamos a elas serem negras, brasileiras, gaúchas e etc. Ser negro é um identidade. E como tal é construída a partir de múltiplos fatores, e a família, no caso de uma identidade étnica é peça chave. Ser preto diz somente a respeito da tua cor de pele.)

Mas vamos ainda mais longe. Você deve estar se perguntando: como ela fez isso??? Afinal, uma mulher branca pode ensinar uma criança negra a ser "negra"??

A resposta é simples: respeito e auto-estima. Minha mãe me ensinou a gostar de mim, da minha ascendência, respeitar a história de quem veio antes de mim, e principalmente me ensinou a respeitar as pessoas ao meu redor, não importasse a cor que elas tivessem.

Aqui um ponto importante: isso não me livrou de sofrer racismo. Até porque acredito que todo negro (seja mais claro como eu, ou preto como a noite) já sofreu racismo. Talvez não episódios "blockbuster" de ser barrado em algum lugar ou tomar um atraque violento da polícia. Mas os "racismos cotidianos", tão comuns num país que se diz não-racista como o nosso, todo negro já passou: ser "seguido" pelo segurança do super, ou, entrar numa loja de shopping e a vendedora não acreditar que tu possa comprar algo dali. E a mais clássica pra mim, mestiça, é quando alguém que me ouve dizer que sou negra sai com essa "Ah! Mas tu é bem clarinha..." como se isso "amenizasse" o fato de eu "querer" ser negra (afff...). Pra mim não importa a intensidade: qualquer um desses episódios é racismo.

E aqui mais uma lição importante de minha mãe: ela me ensinou a me defender do racismo. Não com chutes e pontapés. Ela estava sempre atenta para que cada vez que um coleguinha na escola dissesse que meu cabelo era ruim, por ex., isso não abalasse minha auto-estima. Toda vez que eu precisei ela estava lá pra me lembrar de que ser negra é lindo. De fato, ela não pôde impedir que acontecesse, nem pôde impedir que doesse. Mas ela estava lá, atenta. E cuidando para que essas coisas não determinassem minhas atitudes com relação aos colegas (preconceito não se abole com mais preconceitos) e principalmente com relação a mim mesmo.

Atualmente acho que será um pouco mais "fácil" ajudar o Teodoro a enfrentar o racismo. A Lei 10.639 que torna obrigatório o ensino de História da África e dos afrodescendentes, caminha a passos lentos mas é um avanço e uma realidade. O fato de racismo ser crime também ajuda. Hoje é possível uma criança negra ter na sua própria família exemplos positivos, com irmãos, primos e tios entrando na Universidade pelo sistema de cotas. Há alguns anos a universidade era um mundo proibido pra os negros, então como poderia passar pela cabeça de uma criança negra que ela tem esse direito?

Todos esses fatos constroem um cenário em poderei mostrar ao Teodoro as coisas belas que nossos ancestrais trouxeram ao Brasil e ele não será o único a saber disso (meu caso na escola...). Poderei ensinar ao Teodoro que o RS não foi construído apenas por italianos e alemães. Poderei ensinar ao Teodoro que ele pode usar o cabelo dele da forma que ele achar melhor, não que os outros esperam que use. Poderei ensinar ao Teodoro que ele tem que ser atendido de forma igual a qualquer outra pessoa quando entrar numa loja.

Principalmente, pretendo ensinar ao Teodoro que ele descende de um povo que lutou muito para estar onde está, que construiu esse país tanto quanto brancos e indíos. E que ele deve honrar esse passado construindo um país igual para TODOS.





Um comentário:

Mima disse...

Sherol, não tinha passado por aqui antes. Desculpa!!!
Adorei teu post. Muito bom e necessário.
E torço mesmo para que o Teo cresça num mundo muito melhor do que o que nós crescemos.


P.S. Eu acho teu cabelo encaracolado lindão, tá! Bem melhor do que esse liso escorrido sem jeito que eu herdei. :P
Ahhh, só não tente me fazer chamá-la de "parda" porque vou ter um chilique. Tu não é um papel ;-)